sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Série de Estudos!


Na última postagem, falei sobre alguns aspectos do princípio da solidariedade. Dentro deste, comentei sobre o princípio do perdão, uma característica do cristianismo que, embora lindo de se ler e ensinar, sua prática requer renúncia de alguns direitos. Temos o direito de receber retratação pela ofensa sofrida, mas Jesus nos põe em tal situação que somos impelidos a perdoar mesmo que não tenha partido de nós a ofensa.

Isso é diretamente inverso aos valores materialistas.

Em nós há um senso de justiça que insiste em cobrar a justa recompensa pelos atos cometidos por terceiros.
Queremos que a moça favelada sorteada no programa de auditório para participar de uma competição onde o prêmio pode (teoricamente) mudar sua vida, vença e seja feliz, porque nos identificamos com sua luta, sua dor, sua insistência em não desistir.

Queremos que aquele homem, aposentado federal, pai de dois filhos que agora estudam no exterior, esposo de uma mulher muito bonita e também bem sucedida, e que foi preso por aliciar meninas de dez, onze anos, para orgias com pedófilos e pessoas com distúrbios sexuais, seja preso... Melhor, seja executado. Ele não merece perdão. Não é digno de misericórdia.

Nosso senso de justiça, embora deturpado, nos incita a não aceitar a transgressão voluntária. Todavia, embora os conceitos não sejam excludentes, antes se completem, tendemos a separar misericórdia de justiça. Para o criminoso e aquele que feriu nosso senso moral de sociedade, exigimos justiça. Mas, se a transgressão partiu de nós ou de um dos nossos queridos, lembramos imediatamente que existe a misericórdia.

Pensando nisto, quero refletir juntamente com vocês sobre outra característica da solidariedade cristã:

“Assim diz o Senhor dos Exércitos; Executai justiça verdadeira, mostrai bondade e misericórdia cada um a seu irmão. Não oprimais a viúva, nem o órfão, nem o estrangeiro, nem o pobre, nem intente o mal cada um contra o seu irmão no seu coração.” 1


“Sede misericordiosos, assim como o vosso Pai é misericordioso.” 

Segundo o Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (DITNT)3 , no Antigo Testamento, a palavra mais comum para misericórdia é hesed4 , que traz o sentido de “comportamento correto segundo a aliança”. Ou seja, traduz o sentimento hebraico comum no A.T. de que todos são beneficiados pela misericórdia comum de Iavé para com seu povo, fazendo uma aliança com estes. Um pacto.


As alianças podiam ser feitas entre partes iguais ou entre um mais forte e um mais fraco. No caso da aliança Abraãmica, Deus assume toda a responsabilidade pelo cumprimento do “contrato” entre Ele e a Abraão, como fica claro no ritual pactual de Gênesis 15.17. Neste ritual, duas partes estabeleciam os critérios do contrato e então partiam um bezerro ao meio, logo, ambas passeavam entre as partes e repetiam a frase: 

“Assim se faça àquele que quebrar o pacto”. Há, porém, uma linha de estudo que propõe que este tipo de aliança era feita entre um Rei e um e seus regentes vassalos. A parte inferior (no caso, os vassalos) passavam entre os animais repetindo uma frase que podia dizer mais ou menos assim: “Assim será feito a este teu servo se não se submeter a tua autoridade”.

De qualquer forma, Deus vai contra todo critério estabelecido, pois, sendo Ele (logicamente) a parte mais forte, o SENHOR, deveria fazer com que Abraão passasse por entre as partes e jurasse fidelidade. Não. Não seria assim. O fluir da história culminando na revelação do Redentor não ficaria dependente de um homem falho, pecador, inconstante e mortal. Logo, o Eterno, Soberano, Imutável, assume o papel que só cabe a Ele: Cumprir seus propósitos. A tocha de fogo, representação do altíssimo, passa entre as partes do animal morto e sela a aliança, de forma unilateral.

Deus é extremamente misericordioso com Abraão.

Deus é imensurávelmente misericordioso com a Nação de Israel:

“O SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que todos os povos, mas porque o SENHOR vos amava; e, para guardar o juramento que jurara a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito. Saberás, pois, que o SENHOR, teu Deus, é Deus, o Deus fiel, que guarda o concerto e a misericórdia até mil gerações aos que o amam e guardam os seus mandamentos; e dá o pago em sua face a qualquer dos que o aborrecem, fazendo-o perecer; não será remisso para quem o aborrece; em sua face lho pagará.”5 

Deus continua a ser absolutamente misericordioso para com a humanidade, pois, embora esta caminhe a passos largos para um trágico fim, esquecendo-se de quem os criou e negando-lhe o direito de soberania sobre todos (embora na prática, Deus não dependa da vontade humana para cumprir seus propósitos), Ele ainda sustenta seu plano redentor e usa de misericórdia para com os homens.

Daí então, baseado no princípio da solidariedade, se conclui que, não é possível confessar a fé cristã, sem o exercício da misericórdia. Jesus advertiu seus ouvintes várias vezes lhes lembrando que, assim como Ele usava de misericórdia para com todos, seus discípulos (e aqui não se refere estritamente aos doze apóstolos) o deveriam fazer entre eles e também a qualquer um que lhes procurasse, independentemente de suas motivações para tal.

“Dá a quem te pedir e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes”.6

Não é possível pensar que aqueles que Jesus curou, estavam todos convictos de sua autoridade messiânica. João testifica que Jesus, conhecendo os intentos do homem, não confiava em suas palavras, pois sabia o que estava em seu interior:

“Mas o mesmo Jesus não confiava neles, porque a todos conhecia e não necessitava de que alguém testificasse do homem, porque ele bem sabia o que havia no homem”. 7 

E revela as motivações de muitos que o procuravam para receber a cura:

Então, Jesus lhe disse: Se não virdes sinais e milagres, não crereis.8 

E daqueles que o seguiam sem o interesse real em sua palavra, mas apenas naquilo que Ele poderia dar:

Jesus respondeu e disse-lhes: Na verdade, na verdade vos digo que me buscais não pelos sinais que vistes, mas porque comestes do pão e vos saciastes.9 

Mesmo assim, o Senhor cura os enfermos, dá vista aos cegos, liberta os possessos.

Não cabe a nós julgar o mérito daqueles que precisam. Fazer um levantamento do histórico para ver se o desafortunado merece nossa misericórdia. O que nos cabe é ser misericordiosos.

Em vários momentos distintos, Jesus demonstra uma compaixão profunda pelos perdidos, pelos humilhados, pela multidão que entra em Jerusalém em busca de conforto para a alma e só encontram um bando de exploradores na porta do templo que pesam ainda mais o julgo que está sobre os ombros dos abandonados.

Imagine você irmão/irmã, sendo uma pessoa pobre no primeiro século, vivendo sob condições precaríssimas em termo de saúde (expectativa de vida em torno de 45 anos), vivendo da criação de pequenos rebanhos de ovelhas em uma terra de lugares inóspitos, cujo único alívio das tribulações cotidianas seria ir à Jerusalém, ao Santo Templo. Chagando lá, ser recebido por um Levita que lhe diz que, para oferecer sacrifícios é necessário fazer a troca da moeda romana pelo dinheiro do templo, a uma taxa de juros absurda. Ainda por cima, ter que comprar ali mesmo os animais para a oferta, pelo preço que fosse mais conveniente aos mercadores. Dá para entender então a fúria de Jesus:

“Jesus entrou no pátio do Templo e expulsou todos os que compravam e vendiam naquele lugar. Derrubou as mesas dos que trocavam dinheiro e as cadeiras dos que vendiam pombas. Ele lhes disse: 
—Nas Escrituras Sagradas está escrito que Deus disse o seguinte: “A minha casa será chamada de ‘Casa de Oração’.” Mas vocês a transformaram num esconderijo de ladrões!”10 

O lugar para onde os cansados a abatidos deveriam recorrer para sentir alívio de suas dores e desilusões, se tornara mais um posto de exploração e humilhação.

Penso que o motivo pelo qual tão poucas pessoas exercitam a misericórdia, se deve não só ao fato de que entre os necessitados, estão muitos descarados, que se infiltram entre aqueles que estão em busca de socorro, para se aproveitarem da boa fé de alguns. Mas, também, pelo fato de que o pobre, mendigo, morador de rua, viciado, etc. Fazem parte da paisagem urbana. É isso mesmo! Se pedir a alguém para descrever a vista que tem janela em alguns lugares do país, é provável que uns declarem:

- Da minha janela vejo a rua que passa logo em frente, muitas casas e apartamentos. O trânsito está intenso. Há um grupo de viciados na esquina, e uma pessoa deitada embaixo da marquise da padaria, toda enrolada de forma que não é possível saber se é um homem, uma mulher, ou mesmo uma criança. Tem algumas árvores na praça, onde os passarinhos fazem ninhos e amanhecem cantando a toda voz.

Todos os dias tropeçamos em viciados jogados no chão, velhos enrolados em cobertores surrados sentados em um canto da rua. Todos os dias assistimos os noticiários e vemos crianças em condições subumanas morando de frente para condomínios de alto luxo. Criticamos o governo por não criar programas que atinjam estas faixas sociais. Todos os dias nos comovemos com histórias trágicas, até o momento que desligamos o televisor, e, junto com ele, a consciência.

Agente até pode defender e pregar a misericórdia, mas, sinceramente, não somos misericordiosos. Há muitas exceções, concordo. Mas, exceções não são regras, e Jesus deixa claro que a misericórdia é regra para vida cristã.

No clássico “Em seus passos, que faria Jesus”11  Sheldon conta a história de uma igreja que era por demais tradicional, freqüentada pela alta sociedade da época, dirigida por um pastor que estava imerso na preocupação por preparar um sermão refinado, dentro das regras homiléticas e hermenêuticas, que agradasse ao seu público do Domingo pela manhã. Neste bendito dia, enquanto ele faz sua prédica, entra um mendigo e vai até a frente. Volta-se para a igreja e começa a declarar como foi tratado durante aquela semana pelos fiéis. Ninguém o atendeu. Ninguém o ouviu. Ele era um espectro passeando em meio aquela cidade. Mesmo o pastor, ao invés de lhe receber, preferiu o dispensar pois precisava voltar logo ao raciocínio e concluir seu grande sermão dominical.

Estamos priorizando o secundários, e adiando as prioridades.

Falamos de avivamento. Mas esquecemos que, em todos os tempos, em todos os lugares, os avivamentos aconteceram quando alguém percebeu que a igreja era mais que quatro paredes.

O avivamento veio quando Moody tirou crianças das ruas e os levou a prender sobre Cristo, os assentando (a um custo alto) nas primeiras fileiras da igreja.

O avivamento veio quando George Muller, não se conformando com a insensibilidade das igrejas de seu tempo, construiu orfanatos para mais de sete mil crianças órfãs, lhes ensinando valores cristãos.

O avivamento veio quando Guilherme Carey implantou escolas superiores na Índia, promovendo a educação e a mudança cultural naquele país, mesmo contra a vontade da coroa inglesa.

Se queremos um avivamento, precisamos voltar a priorizar as pessoas e esquecer um pouco esta corrida louca pela fama e sucesso.

A misericórdia é uma característica do cristianismo puro e simples, que verdadeiramente transforma tudo que entra em contato com ele.

Sejamos pois misericordiosos, como o é nosso Pai que está nos céus, que faz que o sol nasça sobre bons e maus, e a chuva desça sobre justos e ímpios.

Continua...


1- Ez. 7.9-10
2- Lc. 6.36
3- COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v. 1. São Paulo: Vida Nova, 2000.
4- Iden. Verbete Misericórdia. Pg. 1295.
5- Dt. 7.7-10.
6- Mt. 5.42
7- Jo. 2.24-25.
8- Jo. 4.48
9- Jo. 6.26
10- Mt. 21.12,13 (versão NTLH)
11- SHELDON, C. H. Em seus passos que faria Jesus, 1ª edição. São Paulo: Editora Cristã Unida, 1997.


Por Davi Oliveira / Publicado em Mente e Espirito.

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